A casa caiu
O Ministério Público quebra sigilo da Bancoop e descobre que dirigentes da
Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo lesaram milhares de
associados, para montar um esquema de desvio de dinheiro que abasteceu a
campanha de Lula em 2002 e encheu os bolsos de dirigentes do PT. Eles
sacaram ao menos 31 milhões de reais na boca do caixa
Depois de
quase três anos de investigação, o Ministério Público de São Paulo
finalmente conseguiu pôr as mãos na caixa-preta que promete desvendar um dos
mais espantosos esquemas de desvio de dinheiro perpetrados pelo núcleo duro
do Partido dos Trabalhadores: o esquema Bancoop. Desde 2005, a sigla para
Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo virou um pesadelo para
milhares de associados. Criada com a promessa de entregar imóveis 40% mais
baratos que os de mercado, ela deixou, no lugar dos apartamentos, um rastro
de escombros. Pelo menos 400 famílias movem processos contra a cooperativa,
alegando que, mesmo tendo quitado o valor integral dos imóveis, não só
deixaram de recebê-los como passaram a ver as prestações se multiplicar a
ponto de levá-las à ruína (veja depoimentos abaixo). Agora, começa-se a
entender por quê.
Na semana passada, chegaram às mãos do promotor José Carlos Blat mais de 8
000 páginas de registros de transações bancárias realizadas pela Bancoop
entre 2001 e 2008. O que elas revelam é que, nas mãos de dirigentes
petistas, a cooperativa se transformou num manancial de dinheiro destinado a
encher os bolsos de seus diretores e a abastecer campanhas eleitorais do
partido. "A Bancoop é hoje uma organização criminosa cuja função principal é
captar recursos para o caixa dois do PT e que ajudou a financiar inclusive a
campanha de Lula à Presidência em 2002." Na sexta-feira, o promotor pediu à
Justiça o bloqueio das contas da Bancoop e a quebra de sigilo bancário
daquele que ele considera ser o principal responsável pelo esquema de desvio
de dinheiro da cooperativa, seu ex-diretor financeiro e ex-presidente João
Vaccari Neto. Vaccari acaba de ser nomeado o novo tesoureiro do PT e, como
tal, deve cuidar das finanças da campanha eleitoral de Dilma Rousseff à
Presidência.
Um dos dados mais estarrecedores que emergem dos extratos bancários
analisados pelo MP é o milionário volume de saques em dinheiro feitos por
meio de cheques emitidos pela Bancoop para ela mesma ou para seu banco: 31
milhões de reais só na pequena amostragem analisada. O uso de cheques como
esses é uma estratégia comum nos casos em que não se quer revelar o destino
do dinheiro. Até agora, o MP conseguiu esquadrinhar um terço das ordens de
pagamento do lote de trinta volumes recebidos. Metade desses documentos
obedecia ao padrão destinado a permitir saques anônimos. Já outros cheques
encontrados, totalizando 10 milhões de reais e compreendidos no período de
2003 a 2005, tiveram destino bem explícito: o bolso de quatro dirigentes da
cooperativa, o ex-presidente Luiz Eduardo Malheiro e os ex-diretores
Alessandro Robson Bernardino, Marcelo Rinaldo e Tomas Edson Botelho Fraga -
os três primeiros mortos em um acidente de carro em 2004 em Petrolina (PE).
Eles eram donos da Germany Empreiteira, cujo único cliente conhecido era a
própria Bancoop. Segundo o engenheiro Ricardo Luiz do Carmo, que foi
responsável por todas as construções da cooperativa, as notas emitidas pela
Germany para a Bancoop eram superfaturadas em 20%. A favor da empreiteira,
no entanto, pode-se dizer que ela ao menos existia de fato. De acordo com a
mesma testemunha, não era o caso da empresa de "consultoria contábil" Mizu,
por exemplo, pertencente aos mesmos dirigentes da Bancoop e em cuja
contabilidade o MP encontrou, até o momento, seis saídas de dinheiro
referentes ao ano de 2002 com a rubrica "doação PT", no valor total de 43
200 reais. Até setembro do ano passado, a lei não autorizava cooperativas a
fazer doações eleitorais.
Outro frequente agraciado com cheques da Bancoop tornou-se nacionalmente
conhecido na esteira de um dos últimos escândalos que envolveram o partido.
Freud "Aloprado" Godoy - ex-segurança das campanhas do presidente Lula,
homem "da cozinha" do PT e um dos pivôs do caso da compra do falso dossiê
contra tucanos na campanha de 2006 - recebeu, por meio da empresa que
dirigia até o ano passado, onze cheques totalizando 1,5 milhão de reais,
datados entre 2005 e 2006. Nesse período, a Caso Sistemas de Segurança, nome
da sua empresa, funcionava no número 89 da Rua Alberto Frediani, em Santana
do Parnaíba, segundo registro da Junta Comercial. Vizinhos dizem que, além
da placa com o nome da firma, nada indicava que houvesse qualquer atividade
por lá. O único funcionário visível da Caso era um rapaz que vinha
semanalmente recolher as correspondências num carro popular azul. Hoje, a
Caso se transferiu para uma casa no município de Santo André, na região do
ABC.
Depoimentos colhidos pelo MP ao longo dos últimos dois anos já atestavam que
o dinheiro da Bancoop havia servido para abastecer a campanha petista de
2002 que levou Lula à Presidência da República (veja o quadro). VEJA ouviu
uma das testemunhas, Andy Roberto, que trabalhou como segurança da Bancoop e
de Luiz Malheiro entre 2001 e 2005. Em depoimento ao MP, Roberto afirmou que
Malheiro, o ex-presidente morto da Bancoop, entregava envelopes de dinheiro
diretamente a Vaccari, então presidente do Sindicato dos Bancários e
indicado como o responsável pelo recolhimento da caixinha de campanha de
Lula. Em entrevista a VEJA, Roberto não repetiu a afirmação categoricamente,
mas disse estar convicto de que isso ocorria e relatou como, mesmo depois da
eleição de Lula, entre 2003 e 2004, quantias semanais de dinheiro
continuaram saindo de uma agência Bradesco do Viaduto do Chá, centro de São
Paulo, supostamente para o Sindicato dos Bancários, então presidido por
Vaccari. "A gente ia no banco e buscava pacotes, duas pessoas escoltando uma
terceira." Os pacotes, afirmou, eram entregues à secretária de Luiz
Malheiro, que os entregava ao chefe. "Quando essas operações aconteciam, com
certeza, em algum horário daquele dia, o Malheiro ia até o Sindicato dos
Bancários. Ou, então, se encontrava com o Vaccari em algum lugar."
Os depoimentos colhidos pelo MP indicam que o esquema de desvio de dinheiro
da Bancoop obedeceu a uma trajetória que já se tornou um clássico petista.
Começou para abastecer campanhas eleitorais do partido e acabou servindo
para atender a interesses particulares de petistas. Entre os cheques em
poder do MP, por exemplo, está um em que a empresa Mizu, de "consultoria
contábil", doa 7 000 reais a um certo Centro Espírita Redenção, em 2003.
Muitas vezes, dirigentes da Bancoop nem se preocuparam em usar as empresas
"prestadoras de serviços" que montaram com o objetivo de sugar a
coo-perativa para esconder sua ganância. O MP encontrou quatro cheques da
Bancoop, totalizando 35 000 reais, para uma ONG de Luiz Malheiro em São
Vicente dedicada a deficientes auditivos - curiosamente, o mesmo endereço do
centro espírita. Os cheques foram emitidos entre novembro de 2003 e março de
2005.
Tanta lambança, aliada a uma gestão ruinosa, fez com que a Bancoop
mergulhasse num estado de pré-liquidação. Em 2004, com Lula já eleito, Luiz
Malheiro foi pedir ao "chefe" Berzoini, então ministro do Trabalho, "ajuda"
para reerguer a cooperativa. Quem relatou o episódio ao MP foi seu irmão,
Hélio Malheiro. Em 2008, dizendo-se sob ameaça de morte, Hélio Malheiro
ingressou no Programa de Proteção à Testemunhas da secretaria estadual de
justiça de São Paulo, no qual se encontra até hoje. Em dezembro de 2004,
depois que Luiz Malheiro já havia morrido, a "ajuda" chegou à Bancoop. Com
apoio de Berzoini e corretagem da Planner (investigada pela CPI dos Correios
sob a acusação de ter causado um prejuízo de 4 milhões de reais ao fundo de
pensão da Serpro), a cooperativa associou-se a um Fundo de Investimentos em
Direito Creditórios (FIDC), entidade que negocia recebíveis, e captou 43
milhões de reais no mercado - 85% dos papéis foram adquiridos por fundos de
pensão de estatais controlados por petistas ligados ao grupo de Berzoini e
Vaccari. O investimento resultou na abertura de um inquérito pela Polícia
Federal por suspeita de que os fundos de pensão teriam sido prejudicados
para favorecer a Bancoop.
O PROMOTOR BLAT
"A Bancoop virou organização criminosa"
João Vaccari Neto é do tipo que se orgulha de ser chamado de "um petista
histórico", o que, no jargão do partido, significa, entre outras coisas, que
ganhou boa parte da vida dirigindo entidades de classe e do partido. Aos 19
anos, começou a trabalhar como escriturário do Banespa. Ficou lá apenas dois
anos. Depois disso, entrou no sindicato de sua categoria e nunca mais pegou
no pesado. Participou de três diretorias da Central Única dos Trabalhadores
(CUT), foi secretário de relações internacionais da entidade e presidiu o
Dieese. Atuou sempre como braço de apoio de Berzoini, a quem sucedeu na
presidência do Sindicato dos Bancários de São Paulo em 1998. Apesar de não
ter a projeção política do amigo, Vaccari conquistou a amizade de Lula,
coisa que Berzoini jamais conseguiu obter. Vaccari, como mostra agora a
investigação do MP, tem mais em comum com seu antecessor, Delúbio Soares, do
que a barba grisalha. E, como Freud Godoy, está mergulhado até os últimos e
ralos fios de cabelo no escândalo dos aloprados (veja o quadro abaixo).
Há duas semanas, um juiz de primeira instância contrariou de-cisão do
Tribunal Superior Eleitoral e determinou a cassação do prefeito de São
Paulo, Gilberto Kassab, por suposto recebimento ilegal de doação de
campanha. A sentença, que colocou em risco a segurança jurídica, foi
suspensa. Na semana passada, o TSE divulgou as regras que vão orientar as
eleições deste ano. São medidas moralizadoras, que incluem a obrigatoriedade
da divulgação de quaisquer processos ou acusações criminais que pesem sobre
o candidato e que dificultam manobras de doadores que tenham por finalidade
esconder a origem do dinheiro. Tudo isso mostra quanto o país está
interessado em aprimorar seu sistema de financiamento eleitoral e
proteger-se dos efeitos tão deletérios como conhecidos que sua distorção
pode causar. Ao indicar pessoalmente alguém com o prontuário de João Vaccari
para tomar conta das finanças do PT e da campanha eleitoral de Dilma
Rousseff, o presidente Lula sinaliza que, ao contrário do resto do Brasil,
não está nem um pouco empenhado em colaborar na faxina.
Uma pergunta que continua no ar
Quem deu o dinheiro para o dossiê dos aloprados? Entre os envolvidos,
Vaccari era o único sentado numa montanha de reais
Patricia Santos/AE
A TROCO DE QUÊ?
Lacerda (à dir.) ligou para Vaccari uma hora depois de entregar o dinheiro
que pagaria o dossiê
João Vaccari Neto e Freud Godoy, envolvidos agora no esquema Bancoop, já
atuaram juntos em passado recente. Pelo menos é o que sugere o registro dos
telefonemas trocados pela dupla às vésperas do estouro do escândalo dos
"aloprados" - como ficaram conhecidos os petistas apontados pela Polícia
Federal como integrantes da quadrilha que tentou comprar um dossiê
supostamente comprometedor para tucanos durante a campanha presidencial de
2006. No caso de Vaccari, então presidente da Bancoop, os vestígios de
participação no caso guardam cheiro de tinta fresca. Foi para ele que
Hamilton Lacerda - na ocasião coordenador de comunicação da campanha do
senador Aloizio Mercadante - telefonou uma hora antes de fazer a entrega de
parte do 1,7 milhão de reais que seria usado para comprar o dossiê.
O episódio teve início quando a família de Luiz Antônio Vedoin, chefe da
máfia dos sanguessugas, ofereceu a petistas documentos que supostamente
comprometeriam tucanos. Deles, faria parte uma entrevista em que os Vedoin
acusariam o candidato do PSDB, José Serra, de envolvimento na máfia que
distribuía dinheiro a políticos em troca de emendas ao Orçamento para
compras de ambulância. Ricardo Berzoini, então presidente do PT, foi acusado
de ter dado a autorização para a compra do dossiê. Valdebran Padilha da
Silva, filiado ao PT do Mato Grosso, e Gedimar Pereira Passos, advogado e
ex-policial federal, seriam os encarregados de pagar os Vedoin com o
dinheiro levado por Hamilton Lacerda. Valdebran e Gedimar foram presos pela
PF num hotel Íbis, em São Paulo, depois de terem recebido o dinheiro de
Lacerda e antes de entregá-lo aos Vedoin. Jorge Lorenzetti, churrasqueiro do
presidente Lula, e Oswaldo Bargas, ex-secretário de Berzoini no Ministério
do Trabalho, também estiveram envolvidos no episódio. Eles tentaram negociar
com a revista Época uma entrevista em que os Vedoin fariam falsas acusações
de corrupção contra Serra. A entrevista acabou sendo publicada pela revista
Istoé.
Nas investigações que se seguiram à prisão de Valdebran e Gedimar, a PF
identificou uma intensa troca de telefonemas entre os envolvidos, incluindo
diversas ligações de Berzoini para a empresa Caso Sistemas de Segurança,
hoje em nome da mulher de Freud Godoy. Godoy seria o contato de Gedimar no
alto escalão do PT. Quanto a Vaccari, bem, até onde se sabe, era o único dos
aloprados que estava sentado sobre uma montanha de dinheiro, a Bancoop. O
fato de Hamilton Lacerda ter ligado para ele logo depois de ter cumprido a
sua missão faz fervilhar a imaginação dos que até hoje se perguntam: de
onde, afinal, veio o dinheiro dos aloprados?
Fonte: Laura Diniz - Revista Veja