Devassa em cascata
Numa decisão para a qual poucos parecem ter atentado,
a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou no começo da semana passada
o Projeto 418/03, que contém uma ameaça como de há muito não se via aos direitos
e garantias civis da população, consagrados na Constituição brasileira. O
projeto, que agora será examinado pela Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania, institui o que os juristas consideram quebra de sigilo por ricochete
? ou, na linguagem corrente, em cascata ? a partir de uma única autorização
judicial.
De autoria do senador Antonio Carlos Valadares, do PSB sergipano, e apresentado em 2003, o texto pretende tornar mais ágeis e efetivas as ações contra acusados de crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Medidas com esse objetivo decerto vão ao encontro do interesse público. Mas nos seus 15 artigos e 129 itens, a proposta faz tábula rasa do indispensável equilíbrio, que deve prevalecer nas sociedades democráticas, entre dois imperativos: o de defender o bem comum, nesse caso representado pelo erário, e o de preservar as franquias individuais da intrusão desabrida do Estado.
Na esfera da coibição e punição de presumíveis delitos contra as finanças
públicas, como, de resto, em relação a toda forma de atropelo das leis, o
Judiciário encarna os proverbiais freios e contrapesos à ação dos organismos
incumbidos de investigar procedimentos eventualmente ilegais e, uma vez
comprovada a ilegalidade, propor sanções contra os seus autores. A Polícia e o
Ministério Público não podem, como é sabido, abrir os sigilos fiscal, bancário
ou das comunicações do acusado. A quebra do sigilo por prazo determinado e a sua
possível prorrogação dependem do ato de um juiz que responderá por ele.
Esse salutar princípio é revogado pelo absurdo projeto, que tem o potencial de
transformar o País numa imensa delegacia, ao atribuir a policiais e promotores
poderes descomunais. O cheque em branco que eles e seus colegas de uma penca de
agências federais passariam a receber tem o seguinte formato: sempre que, num
inquérito, "surgirem novos suspeitos ou novos bens, direitos ou valores que
mereçam investigação própria", fica dispensado o pedido de ampliação da devassa
originalmente concedida por um magistrado. Este deixa de decidir, sendo apenas
informado da iniciativa. O rito se torna automático.
São nada menos de uma dezena as repartições estatais às quais o projeto concede
a prerrogativa de perscrutar a intimidade de pessoas que tenham, ou tiveram,
vínculos com os suspeitos cujo sigilo havia sido rompido por decisão judicial:
Receita Federal, Banco Central, Tribunal de Contas da União, Polícia Federal,
Agência Brasileira de Inteligência, Conselho de Controle de Atividades
Financeiras, Comissão de Valores Mobiliários, Ministério Público, Comissões
Parlamentares de Inquérito, Secretaria de Previdência e Seguros Privados.
"Tem de escancarar", diz o senador Gérson Camata, do PMDB do Espírito Santo,
relator do projeto na comissão do Senado que o aprovou, desdenhando das
garantias civis dos brasileiros. Ele alega que, se a medida já estivesse em
vigor, "o Brasil não teria mensalão do PT nem mensalão do DEM" ? o que não passa
de uma frase de efeito, impossível de cotejar com a realidade. O projeto, reage
a criminalista Flávia Rahal, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa,
"regride na proteção à intimidade". O seu colega Tales Castelo Branco lembra que
a Constituição "é taxativa" com relação a isso. Ele entende ser uma
"licenciosidade perigosa" deixar a quebra de sigilo "ao arbítrio de uma
autoridade administrativa".